sábado, 16 de junho de 2018

às quatro memorizar horário

e lembrar: ser livre, cruzar os braços
e entrelaçar os meus cotovelos com os seus
com os dois de costas um para o outro
de repente você inclina para frente
e me levanta
estou suspenso no ar com as pernas 
em movimento contrário aos meus estímulos
deito por completo nas tuas costas
e esqueço teu nome enquanto estamos
girando em torno do ar que leva o peso
e guia o entorno de nossos corpos
para que a tontura não nos atinja

meu corpo espalhado na sala
sussurra ao ouvido do piso de cerâmica
que esperar as oportunidades
do bicho caçado é laminha
freio no próprio eixo de oportunidades
diz o poeta que as páginas estão cobertas
de tinta vermelha 
e o sangue é visível aos olhos dos versos
sem limites
minhas memórias invadem a infância
e por um momento penso 
no primeiro movimento da estrofe

quarta-feira, 13 de junho de 2018

quatro posições de leitura

I. sentado

vou articulando a coluna e volta e meia consigo ficar ereto. penso nas bochechas e inclino a cabeça pra frente junto com a mão que sustenta o livro. penso que falho na tentativa de um bom aspecto estético para o eu leitor.

II. em pé

soa como um triste impasse entre cansaço físico e esforço mental. as pernas, trêmulas, começam a levantar um odor enfadonho de suor. a posição geralmente determina pré encontros ou esperas.

III. de bruços

os cotovelos doem, mas as mãos estão sob controle. o livro, bem articulado, transa em uma abertura de 180 graus perfeitamente dispersados e entregue aos olhos do interlocutor. há a  rapidez de terminar logo a leitura.

IV. deitado

não consigo ver o livro daqui de baixo, ele está muito alto e tendenciosamente desafiando minha miopia. certas posições horizontais me cansam e suscitam combates. batalhas perdidas. movo-me e deito de bruços.


segunda-feira, 4 de junho de 2018

dois versos escritos upside down

É preciso reverter o sono
que remove todas as minhas vontades
e castiga o espaço exercido pelo silêncio
Do que tenho vontade
sei que posso pensar nas variações
entre marcar um encontro à casa
vermos um filme e sentir os faróis
acesos para as possibilidades
investidas sem medo
Carícias que expulsam qualquer
dúvida entre o tênue trajeto
eu você presos no sofá
Toques de Mahler
esquecidos no fundo do armário
o inglês que tu explicava rápido
por menos de um minuto
a tua pronúncia fluente que me castigava

O canto foi uma provável
estratégia para rabiscar
minhas dúvidas
Será que existe verdade
nessas palavras maldosas
vindas da mais pura pronúncia?
O mais puro dos dentes
os meus tortos sorriam desesperados
depois dos diálogos entre tu eu e o resto
dos colegas que mal percebiam
as investidas sem medo
Por vezes penso ser um louco
efeitos tardios de uma síndrome crônica
ressaca moral e afetiva
alternativas infinitas entre refletir
entrar na tua
entrar em mim

domingo, 3 de junho de 2018

ida

Certa vez voltei para
o quarto e tudo ainda
estava lá como se nada
tivesse acontecido
as poeiras
as folhas — secas —
pendendo do teto
os objetos que desobedeciam 
a ordem do cortejo e lançavam
um olhar assustador
como um assalto
prestes a tomar meu mais valioso 
pertence

Perguntavam frenéticos o motivo

dos olhos caídos
da fúria e do desassossego
posso determinar que nada
é menos concreto
mas sim transitivo
relativo às sensações
de todas as coisas
A única certeza
que tive: não deveria ter entrado naquele ônibus.

sexta-feira, 1 de junho de 2018

dossiê

Mostro aqui o porquê me nutro - afinal, é preciso querer mostrar todas as habilidades escondidas no corpo silenciado do último acento no final da sala. Enquanto finjo observar, interfiro no mundo pela palavra não pensada, que comove meu corpo e me faz comprovar a letra de forma que estampa o papel azul navy. As mãoszinhas já estão provocadas, olhar para os dedos e sentir que as unhas estão crescendo incontrolavelmente, criando uma confusão de velhice e identidade. As mãos se entrelaçam, sentidas pela despudorada ansiedade, fundamental para os dias vazios, mas este não foi um dia vazio, pelo contrário, localizou inúmeros afazeres que nem de longe fiz. Dia vazio. Desgaste a partir das reflexões de todos esses poemas sujos descritos pelo caderno, notoriamente motivados pela dor de cabeça. Despudorada ansiedade. Lugar fundamental para este dossiê.

15.05.18

purgatory

Só há gato escrevendo gato.
Que pena não traduzir tantas
gatografias.
Hora este rebuliço não valerá
mais a pena.
O papel de seda me parece uma ótima
estratégia para os dias
de dor.
Na cozinha, há um rato
preso em um adesivo
embaixo do fogão.
Esfacelado, o rato pensa nas inúmeras
gatografias entre uma
última memória e outra.
Mas antes um gato, reflete,
a morte lenta gera uma confusão.
Dia seguinte, ainda vivo,
titio esmaga seu último orgão.
O rato escapou finalmente
da suja cozinha,
habitat de seus assassinos.